Os momentos de lucidez são cada vez mais breves. Mas ela estabilizou de novo em um estado de agitação moderada. É isso ou a sedação de nem parar em pé. Assim é melhor. É o menos ruim.
As três últimas visitas foram boas. Especialmente essas que fotografei (a foto de cima é de hoje).
Agora ela sempre fica faceira quando eu chego - e os olhos dela brilham por segundos no que eu creio que se possa definir como um reconhecimento difuso. Ela já não sabe bem quem eu sou, mas sabe que eu sou alguém. E sempre consegue lembrar quem eu sou, e sempre diz quem eu sou quando lhe perguntam.
Hoje em dia, a única coisa que realmente me importa é o que eu vejo nos olhos dela. Ultimamente, vejo que o sofrimento causado pela confusão e agitação diminuiu muito. Ela está mais confortável. E isso é tudo que eu posso querer e esperar.
Os diálogos em geral se resumem a uma pergunta e uma resposta, poucas palavras. Quando está mais agitada, ela fala bastante, mas não há nexo. Ultimamente ela está mais quieta. Então fico sentada a seu lado em silêncio, ou conto alguma coisa, ou mostro fotos no celular, ou converso com as atendentes e parentes de outros hóspedes. Às vezes ela entra na conversa de repente. Como hoje. Eu estava conversando com outra pessoa, falando sobre ela. Aí ela perguntou:
- O que eu fiz?
Eu respondi:
- Arte! Tu deve ter feito arte, porque tu é uma velha muito sem vergonha!
- De jeito nenhum! - ela rebateu na mesma hora, rindo, entendendo a brincadeira, participando.
Momentos como esse são os mais preciosos para mim. Quando eu consigo fazê-la rir e brincar. Isso é cada vez mais raro.
Hoje quase a deixei cair estatelada na rua. Consegui puxá-la pelo braço antes que batesse de cara no chão. Eu sei que já não dá mais para sair com ela sozinha, mas a tarde estava linda, ela estava bem - e eu resisto a aceitar que essa fase acabou. Vou tentar visitá-la com companhia, ou pedir uma cadeira de rodas pra darmos umas voltas pela rua. Porque por instantes ela observa a paisagem, os cães e gatos da vizinhança, e fica mais presente.
A doença e também a velhice transformaram minha mãe. E a mim. E inverteram nossos papéis. Hoje pela manhã estava conversando com minha irmã sobre algo que sempre tenho em mente, mas que desde ontem está em primeiro plano em meus pensamentos: minha mãe sempre cuidou de mim. Sempre. Quando eu já estava com mais de 40 anos ela ainda cuidava. Se eu ficasse doente ou precisasse de qualquer coisa, ela sempre estava disponível. Jamais foi do tipo que só telefona pra saber que tal. "Filho é promissória que nunca se desconta", ela dizia.
Agora que cuido dela e que tudo que ela foi está se dissolvendo, eu cada vez valorizo mais e lembro mais de tudo que ela fez - e as coisas que faltaram parecem cada vez menos importantes.