Sei que é domingo que vem, mas no meu caso não faz diferença. Não sei se comemorei essa data com meu pai alguma vez, provavelmente apenas no meu primeiro ano de vida, quem sabe no segundo. E não mais. Porque depois disso só o vi mais duas vezes, uma em 1969, creio eu, e a outra em 1975, quando eu e minha irmã fomos para o Rio de Janeiro com minha mãe conhecer a família paterna. Nessa ocasião, um acontecimento ilustra com perfeição o que "pai" significava para mim aos 12 anos - e antes e depois disso, até dezembro do ano passado, pouco antes de eu completar 49 anos e abrir minha Caixa de Pandora.
Uma das tias morava numa casa em São Conrado, ficamos lá. E lá fizeram a reunião de família. Quando eu cheguei na sala, havia um mulherio, avó, tias, primas e apenas um homem. Perguntei pra mãe: "Quem é aquele homem lá?" "Teu pai", respondeu ela. Essa possibilidade simplesmente não havia me ocorrido. Foi uma completa surpresa para mim ouvir "teu pai". Eu não tinha pai.
Meu pai foi embora de Porto Alegre de volta para o Rio de Janeiro em 1965, ele e minha mãe se separaram. Na viagem para o Rio dez anos depois, lembro de sair sozinha com ele e minha irmã apenas uma vez. E lembro da sensação totalmente desconfortável, da artificialidade, da distância que nem era só distância, era uma total falta de conexão. Ele era um estranho, e eu o estranhei muito. Muito mesmo. Eu só queria voltar logo pra perto de minha mãe, das tias, da avó. Das mulheres.
Meu pai morreu quando eu tinha cerca de 30 anos. Não lembro a data, lembro apenas que uma das tias ligou do Rio de Janeiro para avisar. O que eu senti: nada. O que eu poderia ou deveria sentir? Lembro de ficar parada diante de um espelho me olhando, vasculhando meus olhos e meu rosto, tentando descobrir alguma emoção em mim. Achei que eu deveria sentir alguma coisa. Não senti nada.
Já fiz muita terapia nessa vida para, entre outras coisas, entender o que a ausência de meu pai causou em mim. Entender eu entendi faz tempo. Comecei a entender na infância, no desconforto que eu sentia na escola quando se falava de família. Eu sempre era uma das poucas das minhas turmas que não tinha pai. E não tinha no sentido absoluto, porque eu não sabia nada dele. Ele não existiu na minha vida. E no lugar dele dentro de mim havia um vazio que tentei preencher projetando o pai nos homens que amei. E, como nós budistas sabemos (e os físicos quânticos também), vazio não é ausência de tudo, um nada, e o meu vazio paterno estava repleto de coisas que eu não via e não sentia, mas que lançavam uma sombra e pesavam dolorosamente sobre mim.
Não por acaso, sempre tive horror de Dia das Mães e Dia dos Pais. Sempre sonhei em abolir ambas de meu calendário. Eu realmente odiava essas comemorações, por mais que tentasse não sentir isso. O Dia dos Pais só se tornou menos desagradável quando me tornei mãe. Contudo, só no domingo da semana que vem eu realmente vou dizer "Feliz Dia dos Pais" para meu ex-marido com sinceridade, com vontade. E com enorme respeito, admiração e carinho por ele ser um pai maravilhoso não só para nossa filha, mas também para as suas duas filhas de coração.
Ao pensar em meu pai, observei que dois homens da maior importância em minha vida são ótimos pais - de filhas mulheres. E isso me deixou feliz comigo mesma, porque, por mais descompensada que eu fosse, nunca me envolvi maus pais ou ex-pais. Primeiro pensei “ex-pais como o meu”, mas depois veio o abrandamento. A aceitação. Meu pai teve os motivos dele para fazer suas escolhas. Eu não sei de nada. Como teria o direito de julgar? E de que adiantaria condená-lo?
O que é a realidade senão aquilo que se vê, aquilo que a mente cria? Eu prefiro pensar que meu pai foi um homem bom, com seus defeitos – que são a única coisa que eu soube dele desde a primeira infância até o começo deste ano, quando pedi para meu tio contar alguma coisa, qualquer coisa sobre esse homem cuja ausência só agora estou conseguindo preencher dentro de mim sem querer que os homens que eu amo façam isso. O pouco que meu tio lembrava me ajudou a ver meu pai como um homem normal, não um monstro. Bem melhor, até porque, além do silêncio eloquente sobre ele, quebrado apenas por breves comentários sobre os defeitos, também cresci ouvindo: “Ela tem o gênio do Martin”. O que evidentemente não era um elogio.
De que me serviu toda essa negatividade? Me fez feliz? Me ajudou? Não. Pensar em meu pai como alguém com qualidades boas (e defeitos, como todos) me faz feliz, me alegra. E só assim eu posso me aceitar de verdade – afinal, ele está em mim, eu sou parte dele, ele vai viver para sempre através de mim e da minha descendência. E, pelo que consta, tenho o gênio dele. Não ter meu pai dentro de mim era não ter uma parte de mim. Não gostar do pai era não gostar de mim. Não aceitá-lo era não me aceitar . Rejeitá-lo era me rejeitar. Julgá-lo, condená-lo, culpá-lo, era julgar, condenar e culpar a mim mesma. Se posso me ver como uma Dakini Espertinha, posso ver meu pai como um Daka Espertinho.
Feliz Dia dos Pais para todos. Em especial para os dois homens que eu amei, amo e sempre amarei, que são pais amorosos para suas queridas filhas. É muito claro para mim que um dos motivos para amar esses homens e ter me envolvido profundamente com eles é justamente o fato de serem bons pais. Pais sempre presentes na vida de suas amadas filhas.
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