A saída do cercadinho emocional prossegue. E traz à tona dores até então ocultas.
Na segunda-feira, me vi como o bebê que chorava no carrinho, no berço e no cercadinho pedindo colo da mãe, que não cedia para não acostumar mal, para não deixar a criança manhosa. Chorei o abandono emocional, a frieza daquela que me criou maravilhosamente como podia sem ajuda do pai, a que foi "o homem da casa". Que proveu tudo, menos o afeto, o carinho. Não se pode dar o que não se recebeu e não se conhece.
A imagem de minha mãe como homem da casa serviu de referência para meu arquétipo masculino. Meu arquétipo masculino é trans. O que explica meus peculiares interesses.
O final de um relacionamento causa em mim uma reação excepcionalmente intensa de sofrimento por reviver a sensação de abandono e desamparo.
No momento, me sinto sem pai, nem mãe. A dor desencadeada por essa percepção infantil é indescritível. Mas também redentora. Entender é o primeiro passo para curar. E a vontade de se curar, de mudar, atrai a benevolência do universo.
A saída do homem da casa de certo modo é ainda mais impactante que o abandono do pai. Porque pai eu nunca tive. E a mãe foi a grande figura de minha infância (e toda a vida).
O momento abriu espaço para minha filha se manifestar não mais como filha adolescente, mas como adulta, uma jovem mulher de 19 anos. Muito inteligente, muito sagaz, muito amorosa e o principal nesse instante: compreensiva. Milha filha é parecida comigo, ela entende o que eu sinto, consegue ser empática. Amiga e confidente.
E há outras figuras femininas importantes.
A terapeuta que desde outubro conduz meu processo de reorganização. Sinalizando e pontuando com objetividade. Fazendo eu ver não só meus erros e problemas, mas reconhecer minhas qualidades e o valor de muito que fiz e faço.
A nova amiga que me acolheu em sua casa com o carinho e doçura de que preciso.
A nova amiga que desinteressadamente me indica como tradutora.
Minha irmã, parecida com nossa mãe como homem da casa. Prática. Rápida. Decidida. Focada. Meu oposto. Me dá nos dedos com firmeza, mas sem crueldade. Me estimula a sair da inércia. E implementar as mudanças que há vinte anos "quero" fazer.
E minha irmã de alma, a amiga que nunca vi pessoalmente, mas com quem converso diariamente há um ano. Essas conversas nos proporcionam os mais incríveis insights. É uma troca riquíssima de experiências, uma aprendendo com a outra.
Sem pai, nem mãe. Sentindo a dor do abandono e desamparo infantil. Isso é real. Aconteceu. Mas já passou. E essas feridas podem ser limpas e cicatrizadas.
Igualmente real é que não estou sozinha, embora o sofrimento possa dar essa sensação. Essas mulheres estão me acompanhando. Estão por perto. Mas evidentemente tudo depende de mim.
Nos últimos anos, eu disse para duas pessoas que ia mudar em termos de vida profissional e financeira. Não mudei. Minha filha comentou que me ouve falar isso há dez anos.
Por que não mudei? Porque não sabia como. E porque associava a dependência financeira a amor, afeto, cuidado, interesse pela minha pessoa. Ser independente seria não ter nem essas migalhas de amor.
As coisas agora chegaram ao ápice. Ou ao fundo do fosso. Baixando a poeira, é hora de finalmente começar as mudanças. Tenho medo, tenho dúvidas. Mas não tenho alternativa. Que meu otimismo e minha determinação prevaleçam.