No dia 18 de fevereiro, sábado, corri pela última vez. Corri não, penei por intermináveis 8km até abortar o treino e voltar caminhando para casa. Simplesmente não tinha força, não tinha ânimo. Não entendia o que diabos estava acontecendo comigo. Cada vez mais lenta, cada vez mais pesada, cada vez mais cansada, cada vez mais desanimada.
No dia 19, domingo, me arrumei toda para correr. Na hora de sair, na porta, simplesmente desisti. Não fui. E, ao decidir que não iria, caiu a ficha: eu não conseguia mais correr porque estava doente, vinha com dor crônica desde o final de setembro. Só naquele momento minha mente processou as informações que meu corpo transmitia há tempos: a dor não era de esforço, era uma nova crise da hérnia de disco. Na tarde daquele domingo eu comecei a sentir realmente a dor, e comecei a mancar levemente.
Dali em diante foi downhill.
Ressonância, fisioterapia, neurologista, medicação, cirurgia.
A cabeça manda no corpo. E a minha mente manda muito. Sou muito determinada, muito disciplinada. Treino dado é treino cumprido. Sou também muito ativa, cheia de vida e de energia. Eu amo me exercitar, a hora do treino é um momento de prazer, uma alegria, raramente uma obrigação - às vezes saio meio de má vontade, mas é começar a malhação que a preguiça acaba. Nos últimos meses antes da crise isso mudou, e eu não vi o óbvio, a doença, achei que estivesse entrando na menopausa, estressada, alguma coisa por aí. Afff. Nada disso. Estava era ferrada mesmo.
Em nenhum momento depois de entrar na crise pensei: "Se eu tivesse visto antes, se tivesse me cuidado antes, não teria havido a necessidade de operar". Não me arrependo de nada do que fiz. E tenho a mais absoluta certeza de que, se eu levasse uma vida menos ativa, essa hérnia teria era estourado antes. Gostaria que meu corpo tivesse reagido à fisioterapia, ou à gabapentina. Não deu. Ok. Agora espero que se recupere plenamente e que em breve não haja mais dor alguma. E aí vou ver como será minha nova vida.
O que eu quero? Quero voltar às aulas de dança. Quero nadar. Quero poder fazer alongamento, yoga e pilates. Quero praticar no trx. Quero voltar a correr. Correr, trotar não me interessa. Quer dizer, se eu não puder mais correr, treinar corrida, vou fazer outros exercícios, porque ficar trotando não é pra mim. E quero voltar à musculação. E quero poder pedalar. Quero o de sempre: abalar, badalar e me esbaldar. Quero fazer atividades vigorosas e me sentir bem, sem colocar minha coluna em risco.
Na corrida, sempre me vi como maratonista - e não sei se terei vontade de continuar treinando corrida se não puder mais fazer a maratona. De momento não estou pensando nessas coisas. O neurocirurgião é contra a maratona, eu sei que voltar a treinar para isso será uma aposta altíssima, não sei se vale a pena, tenho muito a perder - e talvez os ganhos não compensem. A única coisa que sei é que ainda me vejo como uma velha coroca maratonista. Mas talvez eu seja uma velha coroca esportista em alguma outra modalidade.
Felizmente até agora não sinto vontade de fazer nada. Não tive vontade verdadeira de correr nenhuma vez desde 18 de fevereiro. Sinto vontade teórica de fazer as outras coisas, mas sei que ainda não dá, então não há sofrimento ou frustração. Minha mente está atenta às minhas necessidades físicas de recolhimento. Estou observando meu corpo, percebendo as dores e me esforçando para dar fim a elas. E esse esforço significa basicamente não fazer força, não fazer movimentos bruscos, ter paciência e manter o otimismo. E tomar os remédios que o neurocirurgião propõe.
Enquanto eu caminhava ao sol hoje, tive a percepção de que, desde 18 de fevereiro, uma coisa sempre se manteve constante: as melhores horas dos meus dias, por mais dor que houvesse, eram aquelas em que eu estava em movimento: na aula de dança, na musculação, na fisioterapia, ou apenas me arrastando manca pela rua às vésperas da cirurgia, quando eu não conseguia mais fazer quase nada. Por isso eu dava jeito de sair da cama todas as manhãs - e sair da cama era o pior momento. Eu sabia que, depois do horror para me pôr em pé e me vestir, o resto seria menos ruim. Em nenhum momento me deixei paralisar pela dor. Em nenhum momento eu desisti de me manter funcional. Eu sabia que a dor não passaria se eu ficasse na cama, então melhor levantar e manter a vida em curso do melhor jeito que desse.
Depois da cirurgia essa sensação segue estável. Meus melhores momentos são quando consigo dar pequenas caminhadas com um passo firme e ritmado. Me sinto tão bem, tão animada e confiante, mesmo com as pinçadinhas e o desconforto do ciático. É muito melhor do que estar sentada ou deitada, a dor é menor - ou menos perceptível talvez. Quando eu me movimento, me sinto uma pessoa saudável, eu sou muito maior que a dor, que a lesão, meu corpo não é uma chaga ambulante, ele tem apenas uma parte sensível.
Hoje fui no neurocirurgião. Comecei a tomar naproxeno, 500mg de 12/12h por cinco dias. Sem exercício, com exceção de caminhadas leves. E sem fisioterapia nesse período. Na quarta vamos nos falar de novo e ver como evoluí.
Ele disse que gostou de me ver em movimento, que olhando pra maneira como me movo não dá pra dizer que eu esteja com dor. E não dá mesmo. Eu não vou andar por aí mancando, me arrastando, encurvada. Estou me movendo com cuidado, mas com firmeza. A dor não diminui se eu andar toda renga e encolhida. Em alguns momentos o corpo trava e se curva, mas faço o possível para me manter o mais funcional possível.
Acho que o corpo trava quando a mente se retrai, quando eu sinto medo. Medo de não ficar curada, medo de que a cirurgia não tenha dado certo. Medo de que a dor não suma. Quando eu sinto medo, a dor parece maior, mais incapacitante. E aí eu tenho mais dificuldade para me mover.
Mas meu medo é muito menor que meu otimismo, minha autoconfiança e minha determinação. E por isso eu passo a maior parte do dia numa boa.
Todo mundo que me vê diz a mesma coisa desde o momento que a cirurgia acabou: não parece que eu fui operada. Claro que não parece. Hahaha, já na sala de recuperação as enfermeiras ficaram malucas comigo, eu só dizia que queria ir pro meu quarto de uma vez, falei tanto que elas me ajudaram, colocaram uma sonda, fiz xixi e pude ir embora. No outro dia de manhã, a enfermeira que me acordou disse que nem parecia que eu estava no pós. E eu não me sentia mesmo em pós-operatório. Estava ótima, sem dor. Feliz da vida. Fiquei exultante quando o Albert Brasil apareceu, me tirou da cama, e eu pude dar meus primeiros passos. A glória!
Achei que fosse ser tudo uma barbada. E sofri um baque na quinta-feira da semana passada, no oitavo dia, quando acordei com dor pela primeira vez. No final de semana fui pro buraco no sábado à noite. A dor aumentou, eu fiquei com muito medo, achei o cúmulo ligar pro médico em pleno final de semana, aí me travei toda, mal conseguia andar. Tive uma crise de choro e instabilidade. E depois me reorganizei. Minha mente acalmou-se, concluí que não havia motivo para pânico - ainda -, que com certeza a dor era reflexo da retirada da medicação e do pós-operatório. E desde então venho levando.
E todo mundo me diz que eu não pareço recém-operada. Claro que não. Acontece que eu me vejo como sempre me vi: uma pessoa muito saudável e disposta, cheia de energia e vida, ativa, abençoada com um corpo de luxo, um corpo perfeito, que funciona maravilhosamente, que me dá grande alegria e prazer. Eu sei que estou em recuperação, eu sinto a fragilidade. Mas ela não é incapacitante. Ela é uma parte menor do poderoso e feliz agregado que eu sou.